Não podemos nos sentir plenos enquanto não tomarmos real
consciência de nosso físico.
A mente e o corpo não devem ser pensados como
coisas separadas.
Texto - Jeanne Callegari
Alienação corporal
"A gente vive em uma cultura que aliena nosso corpo", diz a atleta e
escritora Marília Coutinho. "Nossas instituições criam um indivíduo que vê
a mente em primeira pessoa, mas pensa o corpo em terceira pessoa." Ou
seja, tratamos os dois como coisas separadas e para trabalhar melhor um,
negligenciamos o outro.
Marília chama o estranhamento do corpo de alienação
corporal. "Alienação significa que algo é separado de um sujeito",
escreve no livro Estética e Saúde (Phorte). É o afastamento do ser humano de
algo que lhe é essencial: sua corporalidade, a consciência de si mesmo.
É uma forma de mutilação. Claro, o corpo não deixa de
existir. Mas, sem perceber, passamos a enxergá-lo como estranho, algo que nos
desobedece, que engorda, emagrece e fica doente à nossa revelia. Vira uma espécie
de criança malcriada, que podemos até mesmo rejeitar por não seguir nossos
desígnios.
Separação da mente
A alienação corporal surge de uma forma de pensar muito
antiga: a ideia de separação entre mente (ou alma) e corpo.
"Como a alma era imortal, era considerada mais nobre,
superior ao corpo", diz Denise Bernuzzi de Sant'Anna, professora de
história da PUC-SP e autora de Corpos de Passagem (Estação Liberdade).
Essa visão é predominante em muitas religiões. O
cristianismo, por exemplo, fala em alma imortal, que o corpo é a fonte do
pecado; deve, então, ser punido. No Ocidente, essa visão atingiu o ápice com
Descartes; sua famosa frase, "penso, logo existo", deu margem para
que a mente fosse considerada superior ao corpo.
Uma vez estabelecida a separação entre mente e corpo, o que
acontece? Muito cedo, e sem perceber, acabamos pendendo para um dos lados.
Corpo ou mente: não podemos ter os dois. Lembra da escola? De um lado, o grupo
dos "esportistas"; do outro, os "nerds".
Forma x corpo
A essa altura, você deve estar se perguntando: "Como o corpo pode ser
negligenciado na sociedade, se tudo que vejo por aí é a busca de um corpo
perfeito, um padrão de beleza único?" De fato, não são os filósofos nem os
físicos que estampam capas de revistas; não é em busca de um cérebro melhor que
as pessoas se matriculam em academias. Mas buscar um padrão de beleza é bem
diferente de termos consciência de nosso organismo.
"O ideal de alma elevada foi substituído por um ideal
de boa forma", diz Denise de Sant'Anna. "O dualismo continua, mas a
oposição agora é entre o corpo carnal, mortal, que fica doente, envelhece, e um
corpo ideal, sempre jovem e limpinho."
Quando buscam as academias, muitas pessoas não estão
preocupadas em conhecer melhor o próprio corpo, integrar-se, ter mais saúde; o
que procuram é um jeito de se encaixar nesse padrão ideal, ter uma forma para
exibir. "Dizem que há uma corpolatria. Na verdade, é uma formolatria:
culto à forma. Corpo cada um tem um, único. A forma, não. Ela é
platônica", diz Marília Coutinho.
Para a escritora, a reconexão por meio da atividade física
passa por estar presente, inteiro, em cada gesto. Por isso, critica o modelo
tradicional de academia. "Você aprende a lidar com as máquinas. Não com
seu próprio corpo", diz.
Fazendo as pazes com o corpo
Mas então é preciso fazer exercício? Sim e não. Ninguém é obrigado a fazer algo
que considere maçante. "O prazer é um componente importante da
equação", diz Marília. Mas, se a ideia é fazer as pazes com o corpo,
reencontrá-lo, não dá para ficar só na teoria: é preciso trabalhá- lo.
Não que seja fácil. Pode doer, cansar, dar trabalho; isso
sem contar as emoções que vêm à tona. Técnicas como osteopatia, Alexander e
fisioterapia especializada em consciência corporal são formas de descobrir o
corpo, assim como o Pilates e a ioga. E mesmo o exercício em si, por que não? Pode ser
ótimo, desde que feito com consciência, sem intenção de adestrar o corpo, e sim
pensando em explorar suas possibilidades.